Doñana ainda estava assustada com o pesadelo quando me ligou esta manhã. Arfava como quem acaba de correr duas léguas, como se todo o oxigênio do mundo fosse pouco.
– O cachecol! O cachecol de tagliatelle! Está vivo!
– Calma, Doñana, tome um café forte e me ligue em seguida.
Ela estava acordada, mas não estava. Tinha aberto os olhos, é verdade, mas neles ainda via a sequência final do sonho, congelada na cena mais aterrorizante. Tentava dar andamento ao filme, chegar ao desfecho, mas o congelamento era irreversível: o cachecol, que antes era de lã, agora era um maço de tagliatelle que apertava seu pescoço querendo esganar a pobre. Doñana suava em bicas, ignorando os seis graus da madrugada.
Não tive coragem de deixar minha amiga sozinha com seu pesadelo, liguei de volta antes que ela tomasse o café. Ela atendeu ainda na cama, hipnotizada pela cena. Tinha arrancado o pijama e tentava livrar-se de qualquer coisa que chegasse perto de seu pescoço.
– Mais calma, Doñana?
– Como diabo esses tagliatelles vieram parar no meu sonho? E o pior é que estão lambuzados de carbonara!
Dez minutos repassando as cenas e Doñana já estava apta para a leitura do pesadelo.
– Na verdade, saí sufocada da aula de ontem. Sufocada e com frio.
A aula de ontem era para ser “a aula dos sonhos” de Doñana. Enfim uma pasta! Enfim uma receita universalmente conhecida na cozinha de sua casa! Enfim alguma coisa que não levava um milhão de ovos e litros de azeite! Enfim uma comida de verdade – e que Doñana jurava que faria com perfeição quase absoluta.
Mas não foi o que aconteceu. Até o momento da cata, tudo ia muito bem. Nossa amiga amassou a pasta, abriu a massa no cilindro, cortou os tagliatelles, preparou uma salsa carbonara de primeira e arrematou com a gema de ovo crua sobre o monte divino. Tudo lindo e perfeito. Até que…
Bueno, a primeira coisa que o chef fez foi misturar a gema, dando um aspecto amarelo claro ao conjunto. “Quando faço isso, também estou testando a consistência da pasta”, avisou. Na segunda misturada do chef, o mundo de Doñana veio abaixo: seus tagliatelles se rompiam como massinha de modelar.
O chef deu aquela olhadinha e perguntou: “Você sabe por que se rompem?” Ela sabia, o que piorava muito sua situação. A massa estava cozida além do ponto – erro inadmissível para nossa amiga!
– Pero, chef, não deixei nem 2 minutos na água fervente!
Com aquela cara de sádico que ele adora fazer na hora de provar os pratos dos aprendizes, o chef chamou todos para testemunharem o desastre de Doñana. “Quero que todos provem e vejam: a massa está passada do ponto de cocção.”
Fosse uma tortilla, uma quiche, um filé a qualquer coisa ou até uma feijoada, Doñana não teria dado a mínima para o vexame. Mas uma pasta? Ah, não, errar uma pasta era demais para ela.
Engoliu em seco e ficou esperando para ver a cara dos colegas.
– Menos mal, amiga, que eles gostaram do meu molho, inclusive o chef.
– O chef gostou? Então é porque o molho estava bom mesmo.
– E de que me adianta um molho bom numa pasta mole?
Doñana não perdoa – nem a si mesma.
Saiu de lá arrasada. Pouco importava que to-das as pastas da aula tivessem saído mal – umas porque foram mal amassadas, outras porque cozinharam demais ou de menos, e algumas porque tinham tanto molho que se desmancharam num lamaçal de carbonara. Doñana não queria saber dos outros. Ninguém ali tinha seu sangue italiano. Ninguém ali tinha visto a mãe fazer pasta desde o berço. Todos podiam errar, ela não.
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Acordada do pesadelo, Doñana tomou duas decisões importantes para arrancar do pescoço o asfixiante cachecol de tagliatelle: 1) Seu presente de Natal para si mesma será um cilindro de abrir massa, para treinar e treinar e treinar até atingir a perfeição. 2) Voltará a tomar uma cápsula de Valeriana antes de dormir. Talvez duas.
Diga a Doñana que massa tem de ser al dente. Cozer demais era pro tempo em que não havia geladeira. Nossas avós sabem disso. Ah, se você quiser umas dicas de massa fresca, mi madre Maria Blanca las sabe de memoria. Ela tem uma máquina de fazer macarrão. Sua massa é incomparável. Besos de Sampa aún gris.
Mari-Jô Zilveti