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Archive for 4 de novembro de 2009

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Foto Anamaria Rossi

Algumas coisas precisam decantar antes de serem escritas. Antes mesmo de as entendermos. Como se tivessem que passar por um limbo da memória – uma noite de sono bem dormido, daquelas em que as lembranças se reorganizam, ou até mesmo uma eternidade sem tocá-las. Até que, num segundo perfeito do tempo, elas se materializam em nossa mente. Ganham forma, cor, textura, densidade, cheiro…

Pensei nisso depois que Doñana me contou sobre a aula de Cocina de ontem. Era para ser o simples preparo de um fondo de carne vermelha, um caldo denso e bem temperado a ser usado no preparo de carnes e molhos. Mas acabou provocando um verdadeiro “mexido” na memória da nossa aprendiz, como aqueles que a gente fazia à noite antes da existência do microondas, esquentando numa panelinha as sobras do almoço – arroz, feijão, carne e o que mais houvesse, tudo junto e bem misturado. Hummm, só de lembrar encho a boca d’água.

Pois na panelinha da memória de Doñana tudo se remexeu enquanto ela foi fazendo aquele fondo de carne de buey. O cheirinho da carne refogada e da cebola dourando devagarinho, os vapores se desprendendo da panela e migrando da cozinha para o quintal onde ela brincava, a espiadinha que ela de vez em quando dava nas panelas da avuela, levantando as tampas, o barulhinho da verdura tocando o azeite quente…

Fazer o fondo é simples, difícil é colocar as memórias no lugar depois. Doñana só se deu conta do tamanho da saudade quando chegou aqui em casa para o chá de hoje. Enquanto me passava a receita, as lembranças foram chegando e criando confusão.

Mas vamos ao dito caldo:

  • Numa panela de fundo grosso e largo, distribua 500 gramas de retalhos de carne (de preferência com ossos) previamente regados com um fio de óleo.
  • Deixe em fogo alto até começar a fritar, então tampe a panela e espere que o vapor cozinhe a carne lentamente, aumentando e reduzindo a chama de tempos em tempos e virando os retalhos para dourar e cozinhar por igual (o resultado é um assado de panela).
  • Quando a carne estiver cozida e dourada, você tem duas opções: se a panela for pequena, retire a carne e reserve, e continue usando a mesma panela; se for grande, siga os próximos passos com a carne dentro dela.
  • Sem limpar a panela, acrescente uma cenoura e uma cebola picadas em cubinhos de aproximadamente 1 cm cúbico (o corte clássico chamado mirepoix). Refogue os cubinhos raspando o fundo da panela para que se solte a crosta que restou da carne. Em fogo baixo, deixe a panela tampada para que a cenoura e a cebola cozinhem lentamente no vapor que delas se desprenderá, mexendo de tempos em tempos, até que estejam devidamente cozidas.
  • Repita o processo com um talo de alho-poró cortado em rodelas finas. Cuidado para que não queimem. Se sobrar gordura e faltar vapor na panela, escorra um pouco do óleo e junte umas gotas de água, alternando sempre entre fogo alto e baixo.
  • Cozido o alho-poró, junte um dente de alho cortado ao meio e deixe-o cozinhar da mesma maneira, alternando entre refogar raspando o fundo e deixar a panela tampada em fogo baixo, até não sentir mais o cheiro de alho cru.
  • Acrescente os aromáticos de sua preferência: uma folha de louro, um galho de tomilho, talinhos de salsa, pimenta-do-reino em grão, alecrim. Refogue mais um pouco, raspando a panela.
  • Agora, uma colherinha (café) de extrato de tomate, se precisar mais umas gotas de água, refogando e cozinhando por mais uns minutos.
  • Para terminar, aumente o fogo, despeje um pouco de vinho tinto (1/3 de um copo americano) e raspe tudo o que ainda estiver no fundo da panela enquanto o álcool do vinho evapora um pouco. Se precisar, mais água.
  • O refogado está pronto quando tudo estiver cozido, sem que sobressaia o cheiro de nenhum ingrediente em especial, a não ser um leve cheirinho de vinho.
  • Aí sim você pode cobri-lo com água fria, tampar a panela e deixar em fogo baixo por três a quatro horas. Olhe de vez em quando e, se precisar, junte um pouquinho mais de água.
  • Ao final, coe tudo e terá um maravilhoso caldo escuro de carne vermelha para usar da maneira que mais lhe apetecer.

Detalhes importantes:

  • A cada passo, chegue seu nariz quase dentro da panela e aspire profundamente para perceber qual é o cheiro que se desprende do cozido. Os olores devem estar equilibrados, sem nada cheirando a cru, antes do próximo passo. E o fundo da panela deve estar limpo, com a crosta incorporada aos ingredientes.
  • Importantíssimo: caldos não levam sal. Nunca. Para evitar que, dependendo do uso que se fizer deles, o resultado seja um prato salgado demais.

Pois Doñana me disse que o Chef ficou muitíssimo satisfeito com o seu refogado. Pediu que todos na turma metessem o nariz em sua panela para entender o que ele estava falando.

Mas naquele momento ela ainda não havia entendido por que uma tarefa tão complexa para alguns de seus colegas parecia tão natural para ela. E por que diabos aquele cheiro mexia com suas emoções de um jeito tão estranho que ela nem sequer deu bola para os elogios do Chef.

Só hoje, quando acabou de me ditar a receita, é que se cumpriu o tempo da memória de Doñana. Ela respirou fundo, como se houvesse uma panela com o refogado bem ali à sua frente, e abriu um sorriso: “Huuummm, era exatamente este o cheiro da macarronada da avuela…”

Minha amiga não sabe, mas suas lembranças decantadas remexeram as minhas. E, sinceramente, duvido que haja, em algum lugar do planeta, alguém que faça uma macarronada tão espetacular e única como fazia Dona Vilma, minha avuela italianíssima. Mas essa receita é relíquia de família, e eu não conto nem para Doñana.

quatrogerações_álbumdefamília

Álbum de família

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