Abro o jornal e as duas primeiras matérias que leio me remetem a séculos, milênios atrás, a um tempo que nunca, jamais deveria ter existido, e segue existindo.
Piratas somali mantêm sequestrado, desde 3 de outubro, o atunero Alakrana, do País Basco, com 36 tripulantes, 16 deles espanhóis. Além do valor do resgate, querem que a Espanha liberte seus parentes presos. Ameaçam matar de três em três se as negociações não avançarem.
Os relatos dos marinheiros que contataram suas famílias por ordem dos sequestradores – para elevar o nível de tensão – descrevem um cenário de selvageria: piratas que passam o dia todo drogados, lutando entre si como animais e armados até os dentes.
Não é Piratas do Caribe, não é Johnny Depp, não é Jack Sparrow com seu charme libertário. É vida real, é século 21, é guerra! Na versão mais selvagem e sanguinária que se pode imaginar. Como é real e selvagem o tipo de política partidarista e sectária que ainda se pratica aqui, ali e acolá, cujos protagonistas só conhecem um tipo de cálculo, o que resulta na maior soma de poder e benefícios para si mesmos.
Por conta dos selvagens de paletó, que convertem pessoas em cifras, ainda há piratas singrando mares, e quiçá estejam a serviço de alguns deles. Por conta de suas disputas ridículas de meninos em banheiro de colégio ainda não foi possível, em um mês de supostas negociações, libertar os homens que pescavam atum para seus nobres sashimis.
Mudo de jornal e fico ainda mais chocada. Uma marroquina grávida foi duramente espancada na porta do colégio de seu filho, por dois homens marroquinos, simplesmente porque não usava véu. Perdeu o bebê. Detalhe: os agressores não eram sequer seus parentes.
Não foi no Marrocos, foi bem ali, em Ciudad Real, sul da Espanha, no caminho entre o Marrocos e Madri. Não foi no milênio passado, foi ontem, anteontem, mês passado, quase meio século depois da revolução sexual e muitos anos depois de as grandes cidades marroquinas passarem a tolerar minimamente mulheres em roupas ocidentais – desde que não sejam as suas.
Já falei várias vezes aqui sobre a absurda variedade étnica e cultural experimentada num simples passeio por Barcelona, e como me encanta a naturalidade com que as diferenças são tratadas. Aqui você pode andar nu pela rua mais movimentada que ninguém, ninguém mesmo, vai ficar te encarando.
Pois dias atrás, seguindo pela Cidade Velha à procura de um posto da Prefeitura, vi pela primeira vez em três meses uma cena para a qual todos os olhares se voltavam. Um casal na faixa dos 30 anos e um garotinho de 4 ou 5 anos, caminhando de mãos dadas e em silêncio.
Ele, de calça jeans, tênis e suéter marrom, era uma figura absolutamente comum, que se pode encontrar tanto na feira como na discoteca. O garoto estava vestido à moda do pai. Entre os dois, presa às suas mãos, a mulher era apenas um par de olhos. Lindos, negros, grandes, sobrancelhas grossas, quase sempre baixos e assustados. Um par de olhos que se podia avistar vez ou outra, escondidos sob o véu negro e longo que lhe cobria cabelos, rosto e ombros. Abaixo do véu, uma enorme e pesada capa cor de vinho cobria toda a superfície de sua pele, até os pés, estes também escondidos num par de tamancos negros.
Os três caminhavam em linha reta, conduzidos pelo homem, e só a criança arriscava olhar ao redor. Segui o casal por um bom quilômetro, observando a reação dos passantes. Não vi uma só pessoa, estrangeira ou não, que cruzasse com eles sem arregalar bem os olhos. Por onde passassem, provocavam mal-estar.
Não era um casal de turistas ricos e exóticos, era uma jovem família muçulmana de classe média arriscando a vida fora de seu país, mas sem arriscar um mínimo passo além da grossa capa de costumes que mantém a energia feminina enclausurada. Mulher livre é mesmo um perigo.
Desisti de segui-los quando se embrenharam pelas ruelas do Raval – no conjunto da Cidade Velha, talvez o maior reduto de imigrantes muçulmanos. Eu já nem sabia onde estava, tinha perdido completamente o rumo, o coração disparado e um nó na garganta, de medo, de raiva, de perplexidade – a mesma que sinto agora depois de ler os jornais do dia.
Quando vamos sair do tempo das cavernas?
caramba Ana, pra mim, o tempo das cavernas deveria ser melhor do que essas cavernas culturais impostas nas diversas culturas equivocadas, principalmente em relação à nós mulheres, sempre vítimas de tais costumes arcaicos e profundamente humilhantes. Quanto aos piratas, a visão sonhadora dos filmes, não se adequam ao real, né? tristes histórias cotidianas de violência, seja física ou moral, é o que se apresenta por toda parte, mesmo nos países mais desenvolvidos, vemos cenas tão chocantes… é impressionante como é difícil falar e praticar a liberdade, a igualdade, a fraternidade e da PAZ! Se cada um de nós já tiver na alma a resignação, já vale alguma coisa! Beijocas, e obrigada pelo texto tão profundo e pertinente.
Te entendo tanto!!
E um detalhe: Eles não estão em 2009, mas sim no ano de 1431.
Lembra da Fètê du Mouton?
Se lembro? Ainda hoje posso fechar os olhos e sentir o cheiro das cabeças de carneiro queimando nas esquinas de Rabat, do couro úmido de sangue pendurado nos muros e varais, do fedor que se esparramava pela medina de Fez vindo do cortume, abarrotado de couros, lembra?
Minha amiga, se o cheiro está impregnado em mim, imagino em você, que viu isso três anos seguidos!
Beijo.
afora o tema, vá escrever bem assim num livro, porra!
O que eu mais gostei – direfente do que se costuma ver em textos de “jornalistas” – é que há 3 tempos do personagem autor: o primeiro, o observador distante. O segundo, o medo assombrado. O terceiro a fúria de quem pode mudar as coisas.
Como dizia nosso amigo Geraldinho, é, Gê, a humanidade não mudou nada!
Nessas horas eu fico com medo da humanidade. Nas outras, já não permito a fúria de quem poderia mudar alguma coisa. No momento, prefiro apenas olhar como observador distante.
Beijos
Te amo pra caralho.
Gê, não pensei em nada disso. Estava tão furiosa que sentei e escrevi, como se vomitasse. Acho que foi isso, um vômito.
E já que hoje eu tou furiosa 😉
também te amo pra caralho, porra!
Beijo.
maneroooooo adooorooooo